Criando o mundo de Catarina
Catarina de Leon, a personagem principal de Marrana!, é uma comerciante de açúcar que vive em Amsterdã. Sua família descende dos judeus sefarditas que foram convertidos à força em Portugal e se estabeleceu na França para fugir da Inquisição e retornar à fé judaica.
Catarina havia se casado com Jacob Lima, um judeu com origens semelhantes, mas que vivia em Hamburgo e juntos foram viver em Amsterdã onde Jacob vem a falecer. Ela assumiu então os negócios com seu sócio, Torres, até que seu filho se tornasse adulto. Nossa história começa em 1633 quando Catarina aguarda que seu filho, já casado, retorne de uma viagem.
Para contar essa história eu precisava saber muita coisa. Onde Catarina morava? Como era sua casa? Como se vestia? O que comia? Como era a Amsterdã do século 17? E sua comunidade? Como fazia negócios?
Falei um pouco sobre isso no vídeo do meu canal no Youtube:
Resolvi detalhar essa pesquisa em uma série de posts com informações adicionais para quem se interessar mais pelas fontes e pelos pontos que visitei para me transportar para os ambientes onde a história se desenrola.
Espero que esse post em especial possa ser também um bom roteiro para quem queira fazer uma linda e significativa viagem a Amsterdã.
A AMSTERDÃ DE CATARINA
Em julho de 2011 viajei para a Itália e Holanda em companhia de uma grande amiga Christina Brunner e de seu filho Thomas. Tive com eles a dose exata de carinhosa companhia e de liberdade para pesquisar meus interesses. Chegamos a Amsterdam na quarta feira, dia 20 bem tarde e ela ficou até o domingo enquanto que eu estendi minha estadia até a 3ª. feira.
Preciosa ajuda
Ao planejar a viagem, encontrei na Internet um excelente site feito por um brasileiro que vive em Amsterdam com as melhores dicas sobre a cidade, e também o anúncio de uma guia turística especializada em história judaica de Amsterdam.
Além de me guiar pelo bairro e antes mesmo da viagem, Jeanette Loeb me forneceu preciosas referências não só para a visita a Amsterdã, mas para o livro que eu estava escrevendo.
Diante do meu interesse pelo meu passado judaico, ela me indicou o Arquivo Municipal de Amsterdã. Vou contar em um próximo post as fontes de documentos genealógicos judaicos que consegui através deles.
Também pela internet eu localizei e entrei em contato uma pessoa que viria a se tornar fundamental em minha viagem. Vibeke Olsen era mencionada como uma das fontes pelos autores do Dicionário Sefaradi de Sobrenomes. Mestra em história medieval, pesquisadora, Vibeke também havia descoberto suas origens judaicas e me acolheu, me guiou, compartilhou comigo o que sabia e foi, sem dúvida, uma calorosa amiga.
Em resumo, todos aqueles com quem eu mantive contato em Amsterdã foram de uma cordialidade ímpar e essa viagem adquiriu mais esse aspecto: o da profunda admiração pelos holandeses e por seu cuidado na preservação do patrimônio histórico, cultural e documental. Mas planejar e fazer contato com as pessoas antes foi fundamental.
A inspiração vinda das artes plásticas
O primeiro ponto que visitamos foi o Rijksmuseum em Amsterdã onde passei um tempão olhando cada quadro, cada cena retratada por vários artistas na época de ouro da pintura holandesa. Eu já os havia contemplado em livros ou no computador, mas estar diante dos originais em todo seu tamanho, luz, cores me causou tanto impacto que fiz com que Rembrandt que realmente morou no bairro judeu fosse um vizinho mencionado por Catarina e tivesse participação na história!
Uma característica importante de boa parte das pinturas desse período é que elas inovam ao retratar o cotidiano e isso inspirou várias cenas do livro. Eu buscava uma imagem para ilustrar cena e encontrava pinturas surpreendentes, fortes que me inspiravam a escrever outras cenas.
A casa de Catarina
No dia seguinte, visitamos o Museu Histórico de Amsterdã, hoje chamado de Museu de Amsterdã onde pudemos ver como a cidade é planejada, cuidada e preservada há séculos! Não é a toa que a Catarina estranha quando vai para … ops! quase conto, mas ia ser spoiler.
Passeamos de barco à tarde pelos canais. Pudemos observar o estilo pontiagudo das moradias coladas uma nas outras com suas enormes janelas envidraçadas dando para o canal.
Reparem nas diferentes decorações do topo das casas. Há um gancho lá em cima para colocar cordas e subir com objetos pesados pela janela.
As casas de Amsterdam são realmente únicas! Como eu as descreveria no livro? Como seria a vida de Catarina em uma dessas casas? Ela era rica, morava em uma casa defronte ao canal, mas como seriam as casas por dentro naquela época?
Felizmente, no Rijksmuseum eu também havia visitado uma exposição de casas de bonecas do século XVII.
Sim! Casas de bonecas encomendadas pelas senhoras ricas de Amsterdã e que reproduziam suas casas nos mais lindos e mínimos detalhes.
Acabei comprando o livro sobre a exposição para “mergulhar” quando quisesse na casa de Catarina. Os detalhes sobre as duas cozinhas da casa de Catarina (uma para mostrar para visitas e outra para uso cotidiano) são claramente mostrados nessas delicadas miniaturas.
Dias depois, descobri por acaso uma casa antiga aberta à visitação, entrei e observei tudo com olhos gulosos.
Aí sim pude entrar de verdade na “casa de Catarina”, subir as estreitas escadas em caracol, sentir o ambiente de sua sala de visitas. Observei o jardim, imaginei rosas e papoulas, enfim, entrei na história.
Visitar o Museu Casa de Anne Frank, embora com outros propósitos e com muito respeito e admiração pela autora e sua curta vida, também me permitiu entrar em um daqueles casarões com vários níveis.
Tempos depois descobri o site da cidade de Delft dedicado às artes plásticas que também oferece uma oportunidade para que todos visitem virtualmente a casa do século XVII do pintor Johannes Vermeer (o autor da Moça com Brinco de Pérola cuja história foi transformada em filme) reconstituída a partir do seu inventário e de outros documentos.
Mas o que eu deveria ter feito e não fiz por desconhecimento foi visitar o Museu da Casa de Rembrandt. A guia que me mostrou o espaço devastado e modernizado do antigo bairro judeu não me disse que essa parte da Jodenbreestraat (rua dos judeus) havia sido preservada.
Fica a dica! Ainda irei lá um dia!
A Sinagoga
A chegada do Shabat é comemorada toda sexta-feira à noite quando nasce a primeira estrela por judeus de todo o mundo.
Após a visita ao Museu Van Gogh (outra paixão), chegou o momento pelo qual eu tanto ansiava: conhecer minha mais nova amiga de infância, Vibeke e participarmos juntas da cerimônia do Shabat na Sinagoga Portuguesa de Amsterdã.
A “Esnoga” de Amsterdã foi construída em 1675 sob o comando do rabino Aboab da Fonseca que havia liderado a comunidade judaica no Recife durante a presença holandesa.
Não foi essa a sinagoga que Catarina frequentou no período em que viveu em Amsterdã, mas eu tinha que visitar esse imponente edifício.
Era um tempo em que em Portugal e Espanha os judeus eram proibidos de manter sinagogas e construir uma sinagoga enorme, de linhas sóbrias, com janelas altas e amplas que permitem a entrada da luz, era uma símbolo da liberdade que os judeus portugueses usufruíram em Amsterdã e de seu poder econômico.
Ela era e ainda é até hoje iluminada apenas por velas!
Diz-se que teria ela sido poupada dos bombardeios ou incêndios por ordem expressa de Hitler que ali queria construir um museu sobre o povo judeu que ele pretendia exterminar.
Eu já havia trocado mensagens com o representante da Esnoga que me deu a boa notícia de que, por conta de alguns reparos, a cerimônia de Shabat seria na grande sinagoga naquela sexta e não na sinagoga menor como era de praxe no verão. Que sorte!
Vibeke e eu havíamos combinado de irmos juntas ao Shabat e depois jantarmos para nos conhecermos melhor.
Ela chegou de bicicleta, é claro, e fomos caminhando enquanto ela me mostrava partes da cidade e se espantava com o meu espanto em ver pontes se erguendo para a passagem de barcos.
Na porta da sinagoga, encontramos gente do mundo inteiro, ansiosa por entrar em local pleno de significado.
Foi uma experiência indescritível celebrar o Shabat nesse local que, além de sagrado, traz a marca da história de um povo que persistiu em sua fé apesar das perseguições. O símbolo dessa sinagoga, uma fênix, representa exatamente isso.
Obviamente não tirei fotos, mas ficam aqui as fotos do próprio site e a recomendação de uma indispensável visita.
O Bairro Judaico e o Museu de História Judaica
No domingo, depois que a Christina e o Thomas partiram e quando o tempo chuvoso e com muito vento inspirava mais uma cena do Marrana, encontrei-me, enfim, com a Jeannete Loeb que me falou sobre a história judaica em Amsterdam, me mostrou o bairro judaico e me levou até o museu.
Desde o século 17 vivem em Amsterdam duas comunidades judaicas.
Judeus portugueses era o termo usado para designar os judeus sefarditas (Sefarad é como chamavam a Península Ibérica) e eles eram, em geral, comerciantes prósperos que, fugindo conversão forçada e da Inquisição foram bem acolhidos pelos holandeses.
Os judeus da Europa Central e Europa Ocidental eram judeus asquenazes (Ashkenaz é como chamavam a Alemanha) que foram vítimas de perseguições (pogroms) e de muita discriminação. Eram, em geral, bem mais pobres.
Os dois grupos viviam em Amsterdam, mas frequentavam sinagogas diferentes que seguiam e seguem diferentes variações do rito judaico.
A língua sagrada para ambos era o hebraico, mas os judeus sefarditas no seu dia a dia falavam ladino (derivado do espanhol com um pouco de português e outras fontes) e os asquenazes falavam ídiche (derivado do alemão).
Antes do Holocausto, viviam em Amsterdam 140.000 judeus, dos quais 4.300 eram sefarditas. Ao final da guerra, infelizmente, só havia 20.000 judeus, dos quais 800 eram sefarditas.
O Museu de História Judaica reúne a história de ambos os grupos desde 1600 e está instalado onde antes havia um complexo de cinco sinagogas dos judeus asquenazes.
Quis seguir sozinha pelo museu, observando cada item, lendo todos os textos, vendo publicações raríssimas como a Bíblia de Ferrara, objetos de uso cotidiano e outros que chamaram muito minha atenção.
Essa urna, por exemplo, era usada para sortear o nome das jovens que ganhariam da comunidade sefardita seu dote para que pudessem se casar.
O brilho daquele objeto e a esperança ali depositada não saíram de minha memória e eu sabia que, em algum momento, ele ou seu significado fariam parte do Marrana.
NOS ARREDORES DE AMSTERDAM
Cadê os moinhos?
Não posso deixar de mencionar e recomendar um passeio delicioso, fora do circuito judaico que Christina, Thomas e eu fizemos no sábado a Zaanse Schans, ao norte de Amsterdã, novamente pelas mãos da querida Vibeke.
Essa região marcou o início da era industrial na Holanda, alimentada pela energia dos muitos moinhos de vento. Hoje é uma região turística com suas casinhas de madeira, lojinhas, pequenas fábricas (de tamancos, por exemplo) e restaurantes charmosos. Observem os tamancos feitos especialmente para o noivo e a noiva:
Como Catarina iria viajar por campos (opa, spoiler!), a visão da terra roubada ao mar e dos moinhos era necessária, mas nós também precisávamos da paz que as paisagens rurais sempre trazem.
Cemitério – Cemitério???
Pode parecer estranho que alguém queira visitar um cemitério, mas esse foi um dos pontos altos da viagem. A segunda prioridade de uma comunidade judaica ao se estabelecer em um local era definir um cemitério onde seus mortos pudessem ser enterrados de acordo com seus preceitos.
Localizado na cidade de Ouderkerk aan de Amstel, o cemitério Beth Haim abriga 28.000 túmulos e é conservado em seu estado original.
No domingo, Christina e seu filho haviam voltado para o Brasil e no domingo Vibeke e eu iríamos então visitar o cemitério. Ela já havia combinado a visita com o mantenedor e chegou me surpreendendo com uma intimação:
– Vamos ao cemitério de bicicleta! Chegou a hora de você se mover pela cidade como uma holandesa!
Uau! Não contei a ela que morria de medo de andar de bicicleta no trânsito, engoli em seco e fui.
E era longe! Fora de Amsterdam!
Mas o caminho era lindo! Fomos seguindo por uma linda estrada às margens do Rio Amstel (de onde você acha que vem o nome Amsterdam? E a cerveja Amstel?).
Mais vaquinhas, mais moinhos, casas lindíssimas e logo chegamos.
E mais uma vez fomos muito bem recebidas e enquanto a Vibeke trabalhava um pouco com o mantenedor em busca de mais registros históricos, eu caminhei pelas covas imaginando se alguma delas abrigaria um ancestral meu.
Depois o mantenedor me mostrou cada lápide e chamou minha atenção para o fato de que os judeus portugueses eram, como os nobres ibéricos, orgulhosos de sua posição nas cortes de Portugal e Espanha e haviam sido influenciados por isso até mesmo nas lápides.
Enquanto as lápides judaicas tradicionais são muito simples, demonstrando a igualdade de todos, as lápides desse cemitério traziam brasões e inscrições louvando o falecido.
Na volta, mais fotos e encantamentos com a paisagem, mas como Vibeke tinha pressa para ir para uma aula, separou-se de mim no meio do caminho e foi direto para sua casa enquanto eu enfrentava meus piores temores quando entrei em Amsterdã, ao buscar meu caminho no meio do trânsito e de ferozes ciclistas que buzinavam e me olhavam com natural impaciência.
Só fiquei mais calma ao parar para pedir informações para um pai e dois filhos que descarregavam uma caminhonete. A perfeição do inglês do menino que não devia passar de 10 anos, sua gentileza e o olhar orgulhoso do pai que deixou que o filho me orientasse sem interferir reavivaram minha admiração por esse povo que preza a independência.
Fiquei ainda mais tranquila com a genial recomendação do menino: siga a linha do bonde que passa em frente ao hotel!
Não quis, no entanto, abusar da sorte. Deixei a bicicleta no hotel e fui de bonde para a casa de Anne Frank.
Nos próximos posts contarei um pouco do que aprendi com os livros sobre o cotidiano dos holandeses, dos judeus, dos judeus sefarditas, dos judeus sefarditas portugueses, dos judeus sefarditas portugueses convertidos à força (cristão-novos), dos cristãos-novos que retornaram ao judaísmo e a vida desses retornados em Amsterdam, ufa!
Vou apresentar também fontes genealógicas de pesquisa dos judeus portugueses em Amsterdam.
Espero que gostem!
Érico 04/07/2019 (18:23)
Super legal Kátia!
Muito interessante, em especial, para quem for ler o livro!
Obrigado!
katia_pessanha@yahoo.com 04/07/2019 (19:34)
Obrigada pela leitura e pelo comentário!
Marcos Dupim 04/07/2019 (22:30)
Amei sua postagem, Katia Pessanha. Eu tenho uma ancestral, pelo lado matrilinear, saiu da Ilha da Madeira, para viver no Brasil com seu marido, eram avós de minha avó materna. Ela tem uma história curiosa. Descobri recentemente que esta ancestral poderia ser judia.
Abraço, estou ansioso para comprar e ler seu livro.
Avelina Maria Noronha de Almeida 06/07/2019 (13:43)
Que trabalho lindo, Kátia!!! À medida que eu lia, sentia como se estivesse nos lugares que você descreve. Parabéns!!!
Avelina