fbpx

Criando Catarina

Vida cotidiana, relações familiares e trabalho das mulheres judias em Amsterdã no século XVII

No post anterior  eu mostrei os lugares de Amsterdã que me inspiraram e onde busquei informações para compor o cenário do livro, paisagens, casas, clima, etc.

Dando sequência a esse “making of” do livro, detalho em novo post os livros onde fui buscar não só detalhes sobre a vida cotidiana, mas elementos para compor uma personagem feminina naquele contexto, uma judia de família portuguesa.

Qual era a posição da mulher na sociedade holandesa? E da mulher sefardita em sua comunidade? Trabalhavam? Iam à escola? Viajavam?
Se trabalhavam, quem cuidava das tarefas domésticas? Como era sua vida familiar?

Minha fonte predileta para a vida cotidiana na Holanda

Meu exemplar está todo anotado, sublinhado, as páginas dos assuntos principais marcadas com post-it porque eu realmente usei cada capítulo desse livro. Vejam só que curioso:

“As pessoas comiam com seus dedos, auxiliados por uma faca. O garfo só apareceu em 1700 e, mesmo então, permaneceu sendo um luxo por muito tempo. Assim, os guardanapos eram uma necessidade absoluta e, antes que refeição terminasse, eles se pareciam mais com um trapo engordurado. Na verdade, algumas famílias preferiam limpar suas mãos em um pequeno pedaço de material que ficava embaixo de um guardanapo imaculado!”

A Leiteira, Vermeer

Quando descrevo a manhã na casa de Catarina e os gritos do leiteiro e do padeiro foi desse livro que extraí esses detalhes. O mesmo para a decoração da casa, os serviços públicos de iluminação, o que se bebia, a predominância do uso do estanho nos serviços de mesa, as vestimentas, os transportes e muito mais. Eu não me atrevia a compor um detalhe sem consultar esse livro!

Não chego a mencionar no Marrana!, mas pouco se bebia água, havia pouquíssima água potável! Bebia-se leite e… cerveja, a bebida mais consumida.

Fiquei sabendo, por exemplo, que as donas de casa holandesas eram muito ciosas da limpeza de suas casas, mas que não era de bom-tom ter muitas empregadas como era hábito das judias portuguesas quando viviam em Portugal. Portanto, para ajudar Catarina a manter aquele casarão limpo, a lavar as roupas e a fazer comida, havia uma única empregada, Hannah, judia asquenaze, vinda de Hamburgo.

De ketelschuurster, Abraham van Strij (I), 1808 – 1810, De ketelschuurster,

Lembro que havia dois grupos de judeus vivendo em Amsterdã naquela época: os sefarditas e os asquenazes. Eu teria que saber da vida dos judeus sefarditas, grupo ao qual a família de Catarina pertencia.

Outras fontes me revelaram que em suas vestimentas, os judeus sefarditas de Amsterdã seguiam a moda dos holandeses como haviam seguido a moda em Lisboa.

Já as restrições alimentares seguiam as prescrições judaicas (comida kosher), mas incluíam pratos locais, com os ingredientes disponíveis. Para ilustrar o livro, eu cheguei a colocar um quadro do pintor Frans Hals que mostra uma refeição sendo preparada, mas na última revisão antes de enviar para a gráfica, notei que havia um coelho sobre a mesa e o coelho é um animal proibido! Recortei a imagem e tirei o coelho. Pronto! A refeição virou kosher.

Mas o livro não inspirou apenas aspectos cotidianos. Através dele eu conheci como a liberdade religiosa, a vida acadêmica, a descentralização do poder, seu sistema financeiro e o intenso movimento importador e exportador de um pequenino país bem posicionado geograficamente atraiu tantas pessoas de outros países, inclusive os judeus portugueses.

A vida familiar dos judeus da diáspora – o papel da mulher, a criação de Catarina, o mundo do trabalho

LIEBERMAN, Julia R. (Editora), Sephardi Family Life in the Early Modern Diaspora, New England: University Press of New England, 2011 ou A Vida Familiar Sefardita na Diáspora do Início da Época Moderna.

Diáspora foi o termo originalmente usado para se referir à expulsão dos judeus de Israel pelos romanos e expandido para outras expulsões ou fugas e estabelecimento de novas comunidades judaicas em várias partes do mundo. Essa coletânea de artigos sobre a vida familiar judaica em comunidades da diáspora tem um artigo de autoria de Tirtsah Levie Bernfeld que parece ter sido escrito para mim!

“Sephardi Women in Holland´s Golden Age” ou Mulheres Sefarditas na Holanda da Era de Ouro,

Tirtsah lembra o quão restrita havia sido a vida das mulheres sefarditas no império português. Em alguns casos, quando da ausência de seus maridos, as mulheres eram confinadas em instituições! A honra feminina era guardada com extremo zelo pelos membros da comunidade sefardita.

Em Amsterdã, por questões econômicas, sociais ou emocionais, era comum entre os judeus sefarditas que viúvas e mulheres solteiras morassem na casa de um familiar ou que uma esposa fosse morar com seus pais quando da ausência de seu marido. Da mesma forma, as famílias abrigavam amigos e amigas, cunhadas e irmãs, bem como era comum que jovens casais morassem com os sogros. Era o caso de Catarina em cuja casa moravam seu filho e sua nora.

A lei tanto da república holandesa quanto a lei judaica prescrevia que as mulheres casadas fossem subordinadas à autoridade de um homem. No entanto, no caso dos judeus sefarditas em Amsterdã, a autora destaca que, assim como ocorria com as mulheres holandesas, era comum que fosse dado poder às mulheres judias para agir no lugar de seus maridos e que muitos homens sefarditas consideravam suas mulheres como iguais e lhes davam o poder de conduzir seus negócios em sua ausência e de administrar seus bens após sua morte.

Também menciona casais que trabalhavam juntos, ombro a ombro e que a mulher, após o falecimento do marido, seguia muitas vezes tocando o negócio de ambos: comércio internacional de açúcar, chá e seda, farmácia, produção de cera, de comida, etc. Catarina e seu falecido marido, Jacob, eram parceiros assim e ela assumiu o negócio quando ele faleceu.

Rembrandt_-The_Mennonite_Preacher_Anslo_and_his_Wife

Outras mulheres tiveram seus próprios negócios com empréstimo de dinheiro, hospedagem, pequenas costuras, tricô, ressalvando-se que a confecção de roupas era proibida para os judeus.

As mulheres judias sefarditas holandesas eram, em geral, alfabetizadas e tinham um nível educacional superior à média das mulheres de sua época, apesar de não haver instituições dedicadas à sua educação. A autora supõe que as famílias mais ricas contratassem tutores para o ensino doméstico. Além disso, cita exemplos de mães encarregadas da educação de seus filhos o que indica que elas teriam recebido essa educação não só para educar seus filhos, mas para suas atividades profissionais.

Como Catarina nasceu na França e seu marido tinha vindo de Hamburgo antes de morarem em Amsterdã, imaginei-a com um talento para línguas que lhe permitiu falar, além do português, do hebraico e do ladino, o francês, o alemão e o holandês. Ela usava essas habilidades especialmente para manter correspondência com sua rede de compradores e vendedores de açúcar em várias partes do mundo, embora o português representasse o que o inglês é hoje para o mundo dos negócios.

Quanto à vida familiar, a autora destaca o respeito que as mulheres judias sefarditas holandesas recebiam de seus maridos filhos e de outros membros da família com vários exemplos, inclusive de mulheres fortes e capazes de oferecer auxílio financeiro aos necessitados, mulheres com poder cujos bens permitiam que exercessem influência e tomassem decisões.

Também cuidavam para que os casamentos se realizassem dentro do seu círculo de judeus sefarditas e eram ativas em organizações de caridade, especialmente para ajudar as mulheres em dificuldades.

Mesmo as mulheres menos ricas eram igualmente fortes e batalhavam para conseguir dotes para suas filhas, para buscar oportunidades de trabalho e estudo para seus filhos na Holanda ou fora dali.

Quanto mais eu absorvia essas informações, mais Catarina foi ganhando corpo em minha mente como uma mulher forte, profundamente identificada com o judaísmo, dedicada ao trabalho e capaz de viver a aventura que eu estava criando para ela. Ao mesmo tempo lia os relatos da autora sobre mulheres fortes dessa época.

Inspirei-me também em Dona Gracia Nasi – a pessoa mais rica da Europa em seu tempo (século XVI) e grande apoiadora da fuga de judeus da diáspora. Comprei o melhor livro que encontrei sobre ela: BROOKS, Andrée Aelion. The woman who defied kings – The life and times of Doña Gracia Nasi – A Jewish leader during the Renaissance, St. Paul: Paragonhouse, 2012 e contei um pouco de sua história em Marrana!

Ah! Então eu podia usar como fonte de inspiração as mulheres de minha própria família e minhas amigas: generosas, corajosas e batalhadoras, sem que isso fosse um anacronismo, uma visão de hoje sobre mulheres em tempos passados! Fácil! Mudaram os tempos e as dificuldades, mas eu podia sim falar da admirável força feminina.

É claro que defeitos também compunham minha personagem e sua trajetória não foi apenas exterior, mas os acontecimentos e encontros a fizeram mergulhar em seus conflitos internos, muitos deles inspirados em minhas próprias dúvidas e crises.

Nos próximo posts, vou falar do que aprendi nos livros sobre comércio internacional entre famílias sefarditas, a importância dessa rede para o mercantilismo e seu impacto na economia mundial. Também vou falar da vida religiosa específica de quem havia sido convertido à força e retornou ao judaísmo, mencionando aspectos curiosos dessa vida na clandestinidade.

No Comments